Veio-me de súbito uma vontade de dormir num cansaço misto em físico e mental.
Deitei. E naquele estado de quase sono sem de fato ter dormindo ainda, numa
meia consciência inconsciente onde você não sabe se está acordado mas o
contrário também não é verdadeiro, tive uma sequência muito clara e também
muito rápida de três pensamentos que foram eu ter me imaginado andando pela
casa, depois eu me olhando no espelho do banheiro e depois uma força em negro
apagou qualquer outra vontade de imagem de minha mente. Não sei se eu
conseguiria descrever melhor o que vi mesmo que em pensamento pois pensei
também ter visto algo em breve vermelho que de tão breve até agora me parece
ilusão, pois tudo ganhou um preto que beirou a loucura. O que senti? Nesse exato
e efêmero momento eu sistematicamente e simultaneamente, numa experiência que
direi a vida inteira ter sido única pela certeza da probabilidade de não
repetição, apertei meu lençol com tanta força que fiz pressão contra minha perna,
arregalei os olhos como nunca havia feito antes da mesma forma que foi grande o
meu espanto. Sim, agora misturando esses dois blocos de coisas escritas posso
contar o que percebi quase também que ao mesmo tempo que tudo isso aconteceu, e
eu não sabia se mantinha os olhos abertos pelo espanto com as sensações que eu
tive ou pelo espanto que aqueles pensamentos sobre o que acabara de acontecer
me provocaram, e num efeito cascata, fiquei a meditar por quase meia hora,
paralisado na cama ao mesmo tempo que não acreditava do que tinha acontecido
pelo absurdo que é para o alheio o que eu estava pensando. Qual era a sensação
depois de toda essa performance? Ali, naquele momento onde tudo isso aconteceu
ao mesmo tempo e se estendeu por mais ou menos meia hora, eu tive a certeza
mais que absoluta que a minha existência nesse universo, à minha revelia,
estava se desconectando desse plano para se fundir, ainda que para um breve
sonho, à outra existência minha em outro universo. Para mim, e para os físicos
contemporâneos que estão chegando à mesma conclusão apenas agora sobre a
existência concreta desses universos e a extensibilidade do que chamamos de
existência, isso foi mágico. Pude sentir, tocar, experimentar a fina membrana
que separa as dimensões em universos paralelos entre si, mas sobrepostos. Foi
uma experiência única e inimaginável, mesmo que com essa tentativa de fazer
alguém, a que isso ler, imaginar. Poderia ter escrito mais? Talvez, mas não sei
se existem palavras com tamanha potência. É estranho tentar comunicar o limbo
que nos separa de nossos outros eus e de nossos outros mundos como
possibilidades de existência. Tangenciei, sem querer, a potência mais bem
guardada do universo. Senti-me privilegiado e agora ficou a nostalgia. Adoraria
sentir isso novamente. Adoraria ver mas agora em plena consciência o exato
momento em que minha essência flui entre mundos para dar corpo à manta
ininterrupta da criação. E no fundo, senti-me em paz por saber que não sou
louco por pensar minhas próprias agonias, ou então que sou tão louco que nenhum
outro louco entenderia minha loucura.
Tudo
tem dois lados e equidade é balela. Ainda que um flua para o outro e esse fluir
configure o curso natural das coisas, tudo tem dois lados. E como agir diante
disso? É clichê a expectativa ser a mãe da decepção e eu aceito isso, porém
seria igualmente clichê quando as entranhas de um ídolo se nos permitem
assistir à sua mundanidade tão ordinária...? Tenho náuseas. De quem seria a
culpa? Seria dos dois lados, pois não decidiriam qual o sentido do fluxo que
ordenaria sua naturalidade e então nasceu o conflito, ainda que sutil. Um
conflito silencioso e conflitivo consigo mesmo para que fique sempre claro a
sua natureza, ambígua, habita duas faces. Gosto muito daquele exemplo sobre
quando saímos nas ruas e, além de vermos e observarmos os outros, de cá, os
outros, de lá, também nos veem e nos observam. Que fazer diante disso?
Reconhecer esse fluxo existencial que fundamenta a disposição das naturezas no
universo, suponho. Mas, e quando aquelas entranhas, outrora expostas, mancham
seu pé de um sangue equivocadamente pálido? Usou seus últimos esforços mirando
pés errados, ou ainda pés que não eram necessariamente aqueles que responderiam
suas perguntas conflituosas porque ambíguas, que transitam entre dois lados.
Mas, e quando você pensar estar num fluxo ideal de um lado a outro, sem notar
que na verdade você se deixou cristalizar por um dos lados? Como agir diante
disso? Numa manipulação muito mal instrumentalizada você se permite estar, e
então eu, que sempre me pergunto sobre a ambiguidade gratuita de todas as
coisas, fico aqui a me perguntar sobre o porquê de eu ainda estar me
perguntando sobre aquilo que não deveria ser perguntado. Mas, que isso tem
necessariamente a ver com os lados, ainda que esse de cá ou esse de lá? Eu
diria, talvez, que isso seja o reflexo exato de tudo aquilo que não foi
pensado, porque engolido no momento inoportuno. Ou talvez ainda, e de outro
lado, os clichês de certa forma não devem ser de maneira alguma subestimados,
ainda que assim, tão clichês. E quando de um lado eu me percebo ordinário, do
outro lado eu me doo à minha superioridade, porque foi assim que eu consegui
alcançar as poucas coisas que hoje possuem a mim. Sim, você recolheu suas
entranhas mas suas mãos estão manchadas. Por um lado é perceptível a destreza
que tens em remediar até coisas irremediáveis. Por outro lado, é tristemente
notável a falta de destreza que te acomete quando precisas lidar com aquilo que
necessariamente precisa de sobrenaturalidades para ser julgado.
Consequentemente, qualquer tiro sairá sempre pela culatra. É igualmente triste
ver uma mente fadada à potência ser conduzida pela mais bestial designação das consequências
de suas escolhas próprias, mas para não perder o costume, até se tornar clichê,
isso tem dois lados. De um lado, o universo te apresenta mais uma oportunidade
de não se manter cristalizado na sequência de sucessos meritocrais com a qual
julgam seu devir, e de outro terá ferramentas suficiente para fazer mais e
futuras análises que precisarão também de iguais sobrenaturalidades, porque
antes de um ou outro lado se concretizarem, certamente um descontentamento
profundamente infeliz e descontente poderá habitar tudo aquilo que habitas. E
como agir diante disso? Vire-se ao Norte. Junte seus dois pés, um junto ao
outro, bem redundante, como se fosses os dois lados. Dê alguns passos atrás e
torne a olhar para o Norte. Pois lá é onde qualquer ambiguidade encontra paz e
deixa de ser assim, tão de um lado ou de outro.
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